sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

ORDENAÇÃO E SACERDÓCIO

Por William Webster

No Novo Testamento e nos escritos dos Pais Apostólicos não há menção de um grupo especial de homens separados para ministrarem como sacerdotes. O Novo Testamento especificamente ensina que Cristo foi o cumprimento do sacerdócio do Antigo Testamento e é agora o único mediador entre Deus e os homens (1Tm 2.5). O Novo Testamento declara inequivocamente que o sacerdócio humano que Deus estabeleceu sob a lei mosaica foi posto de lado uma vez que Cristo veio. Essa é a verdade demonstrada no paralelo entre Cristo e Melquisedeque no capítulo 7 de Hebreus:

“Porque, mudando-se o sacerdócio, necessariamente se faz também mudança da lei... Porque o precedente mandamento é ab-rogado por causa da sua fraqueza e inutilidade (Pois a lei nenhuma coisa aperfeiçoou) e desta sorte é introduzida uma melhor esperança, pela qual chegamos a Deus” (Hb 7.12,18-19).

A Escritura ensina que o antigo sistema foi posto de lado porque era imperfeito e não poderia concluir o que Deus requeria, mas agora que Cristo veio, ele tem cumprido perfeitamente os requerimentos para a salvação. Ele mesmo se tornou no último sacrifício e sacerdote. Assim, não é necessária a continuação dos sacrifícios, pois ele concluiu a obra de sacrifício por sua morte, e não há mais a necessidade de sacerdócio porque ele é um sacerdote para sempre, de acordo com a ordem de Melquisedeque:

“E muito mais manifesto é ainda, se à semelhança de Melquisedeque se levantar outro sacerdote, que não foi feito segundo a lei do mandamento carnal, mas segundo a virtude da vida incorruptível. Porque ele assim testifica: Tu és sacerdote eternamente, Segundo a ordem de Melquisedeque” (Hebreus 7:15-17).

Cristo é um eterno sacerdote porque ele vive no poder de uma vida indestrutível, e o escritor aos Hebreus salienta que isso é também um sacerdócio exclusivo – suas funções não podem ser transferidas para ninguém mais: “Mas este, porque permanece eternamente, tem um sacerdócio perpétuo” (7.24). A palavra “perpétuo” é a palavra grega que quer dizer “imutável, não passível de ser transmitido a um sucessor” (Thayer’s Greek-English Lexicon, p.54). Como Philip Hughes tem comentado:

Como um sacerdote que, de acordo com a afirmação do Salmo 110, permanece para sempre e que, portanto, mentem seu sacerdócio permanentemente, não há necessidade nem lugar para qualquer tipo de sucessão no seu caso. Pelo fato de ele não morrer, seu próprio sacerdócio não morre, nem é transmitido a outros; não pode haver nenhuma forma de passar a outros um ofício que é única e exclusivamente seu.[1]

O claro e explícito ensino dessas passagens é que Jesus Cristo não instituiu uma nova ordem de sacerdotes humanos através de seus discípulos porque a Escritura ensina que seu sacerdócio removeu a velha ordem e agora exerce um exclusivo e eterno sacerdócio, cujas prerrogativas não podem ser transferidas para nenhum outro. Concordemente, as Escrituras ensinam que os homens tem agora acesso direto a Deus através de Jesus Cristo. Eles não mais precisam de um sacerdócio humano e muito menos de sacrifícios, pois ele se tornou nosso sacrifício e nosso sacerdote.
No Novo Testamento, os dois maiores ofícios humanos que são mencionados para a supervisão contínua da Igreja são distintivamente diferentes do sacerdócio que antes existia. Esses ofícios são aqueles de “presbítero” e “diácono”. O “presbítero” ou “supervisor” é designado como aquele que é chamado por Deus para ensinar e governar, e o “diácono” é chamado para ministrar em um serviço mais prático. Esses são os dois termos usados para “supervisor” no Novo Testamento – presbuteros e episkopos: embora sejam traduzidos por “presbíteros” e “bispos” respectivamente, eles são usados intercambiavelmente no Novo Testamento.[2] Paulo e Pedro, por exemplo, usam os termos presbítero e bispos para descrever o mesmo ofício. A palavra presbuteros ou “presbítero” descreve a posição, enquanto episkopos descreve a função dos presbítero como aquele que governam ou supervisiona. O Novo Testamento exorta os crentes a serem submissos e obedientes aos presbíteros que Deus tem posto sobre eles (cf. 1Pe 5.5; Hb 13.17). O Novo Testamento não usa o termo sacerdotes – hiereus – para se referir a um ofício separado do ministério cristão.
Similarmente, nos antigos escritos da Igreja nenhuma menção de sacerdotes é feita no ministério cristão. Há, às vezes, alguns paralelos feitos entre os ofícios do Novo Testamento e as funções ministeriais do sacerdócio na antiga dispensação – como encontrados nos Escritos de Clemente e Inácio, por exemplo – mas eles não ensinam que o ministério e ministros do Novo Testamento são os mesmos do Antigo Testamento. Clemente em 1Clemente 40-41 usa o sacerdócio do Antigo Testamento como uma ilustração de um principio de chamado e ordenação divinos. Naquele tempo, Deus especificamente chamava e apontava certos homens para performar um ministério específico que deveria ser exercido de uma forma particular. Ele então aplica tal principio aos seus leitores sob a dispensação do Novo Testamento para alertá-los de que Deus ainda chama e aponta homens para cumprir o papel de pastor, presbítero e diácono, e que os crentes devem ser cuidadosos em se submeter às autoridades que Deus tem estabelecido na Igreja.
Clemente nunca usou o termo “sacerdote” para descrever um ministro cristão. Isso também ocorre para todos os escritos dos Pais Apostólicos. Policarpo, Inácio, Clemente e A Didaquê, todos usam os termos “bispo” ou “presbítero” e “diácono” quando se referem àqueles responsáveis pelo ministério cristão. Esses são os termos empregados pelo próprio Novo Testamento. Quando esses e outros escritores fazem uso do temo grego para “sacerdote” (hiereus), é sempre em referência ao Antigo Testamento ou a pessoa de Cristo. O primeiro uso da palavra para se referir a ministros cristãos se encontra em Orígenes, o Pai grego do século 3. Clemente de Alexandria, escrevendo na última metade do século 2, usa a palavra para descrever todos os cristãos em geral.
É com os Pais Gregos do século 4 que encontramos a palavra Hiereus universalmente aplicada para descrever os ministros cristãos.[3] E é com Tertuliano, no Ocidente, que os inicios de uma função sacerdotal no ministério cristão começa a se tornar evidente, pois ele usa o termo latino sacerdotium (sacerdócio) para descrever um ministro cristão. É claro que nos primórdios do terceiro século estavam começando a serem vistos como sacerdotes similares àqueles do Antigo Testamento. O termo grego presbuteros aparentemente mudou de significado, de seu uso original, e passou a ser identificado como um ministro sacerdotal – embora não inteiramente caracterizado por aquilo que mais tarde se desenvolveu no sistema católico romano. Após examinar a evidência do antigo desenvolvimento do sacerdócio, Richard McBrien concluiu que:

Contanto os cristãos entendessem a si mesmos como o renovado, não novo, Israel, eles não tiveram a ideia de substituir o sacerdócio judeu por um sacerdócio próprio... não até os antigos cristãos concluírem que eram de fato parte de um movimento radicalmente novo, distinto do Judaísmo, que foi a base do desenvolvimento de um sacerdócio cristão separado. Outros eventos acentuaram esse processo: o número crescente de gentios convertidos, o deslocamento da liderança para longe da igreja de Jerusalém e para as igrejas de Roma, Antioquia, Éfeso e Alexandria, a destruição do Templo e, finalmente, as próprias tendências sectárias do Judaísmo no período pós-destruição. Concomitantemente, havia um crescente crescimento do reconhecimento caráter sacrificial da Eucaristia, que clamava por um sacerdócio de sacrifícios distinto do sacerdócio judaico.[4]

Pelo tempo de Tertuliano havia uma diferenciação clara entre leigos e o que McBrien chama de “sacerdotes”. Ter uma ordem separada de homens destinados ao ministério não é contraditório ao padrão bíblico, como temos visto, mas o que é contraditória é a aplicação de uma função sacerdotal a essa ordem. Foi Cypriano que cristalizou essa aplicação estabelecendo um paralelo direto entre o Judaísmo e o ministério do Novo Testamento. Ele diretamente aplicou as funções e posição dos sacerdotes do Antigo Testamento aos oficiais da igreja cristã, e assim agindo, forjou a “concepção sacerdotal do ministério cristão como uma das agências mediadoras entre Deus e o povo”.[5]
Na visão católica romana, a ordenação e o sacerdócio conferem sobre o indivíduo a habilidade e autoridade para administrar os sacramentos e a ensinar e governar a igreja. É um sacramento solene sem o qual o indivíduo não está apto a cumprir seu papel como sacerdote, pois este sacramento supostamente põe sobre o individuo uma marca indelével que ele nunca perderá. Esse ensino foi primeiramente anunciado por Agostinho, mas por muitos anos a ordenação não foi considerada um sacramento. Esse ponto de vista de ordenação e ministério sacerdotal evoluiu como todo o conceito de salvação e graça sacramental que foi desenvolvido na Igreja, de modo que apenas um sacerdote autorizado, separado por Deus como no Antigo Testamento, poderia administrar os sacramentos do batismo, da eucaristia, da confissão e da penitência, e assim entregar a salvação ao povo.
É claro a partir do Novo Testamento que há um conceito de ordenação para ministério cristão – o reconhecimento público e a separação de um individuo especificamente chamado por Deus para assumir o papel de um pastor ou presbítero. A ordenação é o reconhecimento público pela igreja de um dom soberano dado por Deus e independente de qualquer obra humana. Mas tal função nada tem que ver como o sacerdócio, pois, como mencionado acima, o Novo Testamento ensina que todos os cristãos têm sido separados como sacerdotes espirituais no Reino de Deus.
Cristo não poderia ter instituído um novo sacerdócio nos moldes do Antigo Testamento, pois tal função de mediação foi anulada agora que ele se tornou um perfeito sacrifício pelo pecado. 

Texto extraído da obra The Church of Rome at the Bar of History de William Webster, pp. 91-95.




[1] Philip Hughes, A Commentary on the Espistle to the Hebrews (Grand Rapids: Eerdmans, 1977) p. 268.
[2] Por exemplo, Atos 20.17,28.
[3] A Patristic Greek Lexicon de G.W.H. Lampe (Oxford: University, 1961), menciona pais como Dídimo o Cego, Basílio, Crisóstomo, Teodoreto, Gregório de Nazianzo, Cirilo de Alexandria e Gregório de Nissa como aqueles que usaram o termo.
[4] Richard McBrien, Catholicism, vol.III (Mineapolis: Winston, 1980), p.802.
[5] Ibid., vol.III, pp.12-127.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

A ASSUNÇÃO DE MARIA

Por William Webster


A doutrina católica romana da assunção de Maria está igualmente desprovida de qualquer tipo de evidência convincente.[1] Ela ensina que Maria foi ascendida ao céu em corpo e alma sem que tenha experimentado a morte, ou logo após sua morte. Esta alegação extraordinária só foi oficialmente declarada como um dogma da fé católica romana em 1950, embora tenha sido crida por muitos por centenas de anos. Contestar essa doutrina, de acordo com o ensinamento romano, resulta na perda da salvação, mesmo não havendo prova escriturística para ela e mesmo escritor católico romano Eamon Duffy entendendo que “claramente não há qualquer evidência histórica que a apoie...”[2]
            Por séculos na Igreja antiga houve um completo silêncio a respeito o fim de Maria. A primeira menção dele é feita por Epifânio em 377 d.C., e ele especificamente declara que ninguém sabe o que aconteceu com Maria. Ele viveu próximo à Palestina e se houve mesmo uma tradição crida e ensinada na igreja quanto às assunção de Maria ele a teria afirmado. Mas ele claramente declara que “ninguém conhece o fim dela”.[3] Em adição a Epifânio, há Jerônimo que também viveu na Palestina e não registra qualquer tradição de uma assunção.
     Isidoro de Sevilha, no século VII, ecoa Epifânio dizendo que ninguém possui absolutamente qualquer informação sobre a morte de Maria. Portanto, não existe testemunho patrístico sobre esse assunto. Mesmo historiadores católicos romanos admitem prontamente este fato:

Nestas condições, não buscaremos o pensamento patrístico – como alguns teólogos ainda hoje, de uma forma ou de outra, buscam – para nos transmitir, a respeito da Assunção de Maria, uma verdade recebida tal como no inicio e comunicada a eras subsequentes. Tal atitude não corresponde aos fatos.[4]
           
        Como então este ensino veio a ter tamanha proeminência na Igreja a ponto de ser declarado como uma questão de dogma em 1950? O primeiro Pai da Igreja a afirmar explicitamente a assunção de Maria foi Gregório de Tours em 590 d.C. Mas as bases para seu ensinamento não era a tradição da Igreja, mas sua aceitação de um evangelho apócrifo conhecido como o Transitus Beatae Mariae cujas as primeiras informações são do fim do século V e que foi atribuído de forma espúria a Melito de Sardis.
         Muitas versões desta literatura foram desenvolvidas ao longo tempo e são encontradas em todo o Oriente e Ocidente, porém todas originadas de uma única fonte. Assim, a literatura do Transitus é a verdadeira fonte do ensino da Assunção de Maria e as autoridades católicas romanas admitem esse fato. O mariólogo Juniper Carol, por exemplo, escreve: “a primeira testemunha expressa no Oriente de uma genuína assunção vem a nós através de um evangelho apócrifo, o Transitus Beatae Marieae do Pseudo-Melito”.[5] Foi através deste escrito que os mestres do Oriente e do Ocidente passaram a abraçar e promover o ensinamento. Mas foram necessários vários séculos para que ele começasse a ser geralmente aceito. O mais antigo discurso existente sobre a Festa da Dormição de Maria afirma que a Assunção de Maria veio do Oriente em fins do século VII e inicios do século VIII.[6] A literatura do transitus é, portanto, altamente significativa e importante para que entendamos a natureza destes escritos. A Igreja Católica Romana quer nos fazer crer que este evangelho apócrifo expressa uma crença comum existente entre os fieis a respeito de Maria e que o Espírito Santo o usou para tornar mais generalizada a consciência da Igreja sobre a verdade da Assunção de Maria.
           No entanto, a evidência histórica sugere o contrário. A verdade é que, assim como com o ensino da imaculada conceição, a Igreja Romana tem abraçado e é responsável por promover ensinamentos que não possuem origem entre os fieis, mas em escritos heréticos que foram oficialmente condenados pela Igreja antiga. A história prova que o ensinamento do Transitus fez com que a Igreja o considerasse herético. Em 495 d.C. o Papa Gelásio emitiu um decreto intitulado Decretum de Libris Canonicis Eclesiasticis et Apocryphis. Esse decreto apresenta de forma oficial os escritos que eram considerados canônicos e aqueles que eram apócrifos e deveriam ser rejeitados. Ele traz uma lista de escritos apócrifos e faz a seguinte declaração a respeito deles:

Os escritos restantes que tem sido compilados ou reconhecidos pelos heréticos e cismáticos a Igreja Católica e Apostólica Romana de forma alguma os recebe; destes, pensamos ser certo citar abaixo alguns que tem sido transmitidos, mas que devem ser evitados pelos católicos.[7]

Na lista de escritos apócrifos que devem ser rejeitados, Gelásio apresenta a seguinte obra: Liber qui apelatur Transitus, id est Assumption Sanctae Mariae, Apocryphus.[8] Isso quer dizer especialmente o escrito do Transitus da Assunção de Maria. No fim do decreto ele declara que essa e todas as outras literaturas listadas são heréticas e que seus autores e ensinos e todos os que aderem a eles estão condenados sob o anátema eterno e indissolúvel. Ele também põe o Transitus na mesma categoria de escritos heréticos como os de Arius, Simão o Mago, Marcião, Apolinário, Valentino e Pelágio. Essas são suas palavras:

Esses e [escritos] similares a esses, que... todos os heresiarcas e seus discípulos ou cismáticos tem ensinado ou escrito... confessamos não serem apenas rejeitados, mas também banidos de toda a Igreja Católica Romana e juntamente com seus autores e seguidores são condenados para sempre em indissolúvel vínculo de excomunhão.[9]

O Papa Gelásio explicitamente condena os autores bem como seus escritos, os ensinamentos que eles promovem e todos os que os seguem. E, significantemente, todo esse decreto e sua condenação foram reafirmados pelo Papa Hormisdas no século VI. Esses fatos provam que a Igreja antiga via o ensino da Assunção de Maria não como uma expressão legítima de uma crença piedosa dos fieis, mas como uma heresia digna de condenação.
Há aqueles que questionam a autoridade do assim chamado decreto gelasiano em bases históricas dizendo que é atribuído a Gelásio de forma espúria. Entretanto, as autoridades católicas romanas Denzinger, Charles Joseph Hefele, W.A. Jurgens e a Nova Enciclopédia Católica afirmam que o decreto deriva do Papa Gelásio,[10] e o Papa Nicolau I em uma carta aos bispos da Gália (c. 865 d.C.) cita oficialmente esse decreto e atribui a Gelásio I.
Pio XII, em seu decreto de 1950, declarou a Assunção de Maria como um dogma revelado por Deus. Mas as bases sobre as quais ele justifica sua asserção não são nem a Escritura nem o testemunho patrístico, mas uma teologia especulativa. Ele conclui que, por ele parecer racional e porque Deus deve ter seguido certo curso de ação com respeito à pessoa de Maria, e porque ele tem todo o poder – o que ele tem realmente demonstrado – devemos, portanto, acreditar que ele agiu dessa forma. Tertuliano lidou com um raciocínio similar de certos homens em sua época que procuravam apoiar ensinamentos heréticos com o argumento de que nada é impossível para Deus. Suas palavras permanecem como uma grande repreensão à Igreja Romana de nossos dias em seus equivocados ensinamentos sobre Maria:

Mas se nós escolhermos aplicar esse princípio tão extravagante e severamente em nossas imaginações caprichosas, nós podemos então entender que Deus tem feito tudo o que nós queremos, sobre a base de que nada é impossível para Ele. Entretanto, não devemos supor que pelo fato de Deus poder todas as coisas Ele tenha feito o que de fato não fez. Nós devemos procurar saber se ele realmente fez isso... será seu dever, no entanto, aduzir provas a partir das Escrituras como nós fazemos.[11]

Tertuliano diz que nós só podemos saber se Deus tem feito algo pela validação da Escritura. Não ser capaz de fazê-lo invalida qualquer alegação de ensino revelado por Deus. Isso nos leva novamente ao princípio patrístico da Sola Scriptura, um princípio que tem sido repudiado pela Igreja Católica Romana e que tem resultado em sua adesão e promoção de ensinamentos que nunca foram ensinados na Igreja antiga, tais como a Assunção de Maria.
O único motivo que o fiel católico romano possui para crer no dogma da Assunção de Maria é que a “Igreja Infalível” o declarou. Mas dados os fatos acima, a alegação de infalibilidade mostra-se completamente infundada. Como pode uma Igreja que é supostamente infalível promover ensinamentos que a Igreja antiga condenou como heréticos? Enquanto um antigo Papa decreta anatemizados aqueles que creem no ensino de um evangelho apócrifo, agora um decreto papal condena àqueles que descreem dele. A conclusão tem de ser que ensinamentos tais como a Assunção de Maria são ensinamentos e tradições de homens, não revelações de Deus.

Extraído do livro The Church of Rome at the Bar of History [A Igreja de Roma no Tribunal da História] de William Webster, pp. 81-85.

Tradução livre: Fabiano Raposo.





[1] Para documentação sobre o dogma da Assunção de Maria veja apêndice 7.
[2] Eamon Dufy, What Catholics Believe About Mary (London: Catholic Truth Society, 1989), p.17.
[3] “Mas se alguns pensam que estamos enganados, deixe-os procurar nas Escrituras. Eles não encontrarão a morte de Maria; não encontrarão se ela morreu ou não morreu; não encontrarão se ela foi sepultada ou não... A Escritura é totalmente silente [sobre o fim de Maria]... De minha própria parte não me atrevo a dizer, mas mantenho meus próprios pensamentos e pratico o silêncio... O fato é que a Escritura ultrapassa o entendimento humano e deixa [essa questão] incerta... Ela morreu? Não sabemos... Se a santa virgem morreu e foi sepultada... Ou se foi assassinada... Ou se permaneceu viva, sendo que nada é impossível para Deus que pode fazer o que desejar; pois seu fim ninguém conhece” Epiphanius, Panarion, Haer. 78.10-11, 23. Citado por Juniper Carol , O.F.M. ed., Mariology, vol.II (Milwaukee: Bruce, 1957), pp. 139-40.
[4] Juniper B. Carol, O.F.M., Ed., Mariology, vol.I (Milwaukee: Bruce, 1955), p. 154.
[5] Ibid., vol.I, p. 149.
[6] Ibid., Vol.II, p.147.
[7] New Testament Apocrypha, William Schneemelcher, ed. (Cambridge: James Clarke, 1991), p.38.
[8] Papa Gelásio I, Epistle 42, Migne Series, M.P.L. vol. 59, col. 162.
[9] Henry Denzinger, The Sources of Catholic Dogma (London: Herder, 1954), pp. 69-70.
[10] Henry Denzinger, The Sources of Catholic Dogma (London: Herder, 1954), pp. 66-69.
    W.A. Jurgens, The Faith of the Early Fathers, vol.I (Collegeville: Liturgical, 1970), p. 404.
    New Catholic Encyclopedia, vol.VII (Washington D.C.: Catholic University, 1967), p. 434.
   Hefele, A History of the Councils of the Church (Edinburgh: T&T. Clark, 1895), vol.IV, pp. 43-44.
[11] Alexander Roberts e James Donaldson, Tha Ante-Nicene Fathers, vol.III, Latin Christianity: Its Founder, Tertulian, Against Praxeas, cap. X e XI (Grand Rapids: Eerdmans, 1951), p. 605.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

OS PAIS DO PURGATÓRIO [EM CONSTRUÇÃO]

Por Jaques Le Goff


Alexandria: os dois “fundadores” gregos do purgatório
A verdadeira história do purgatório começa com um paradoxo, um paradoxo duplo. Aqueles que têm justamente sido chamados de os “fundadores” da doutrina do purgatório foram teólogos gregos. Embora suas ideias tivessem impacto sobre o Cristianismo grego, a Igreja grega nunca desenvolveu a noção de purgatório como tal. Na verdade, durante a Idade Média, o purgatório foi um dos principais pontos de discórdia entre cristãos gregos e cristãos latinos. E mais: a teoria sobre a qual os teólogos gregos basearam sua versão do purgatório era completamente herética aos olhos da Igreja grega, bem como da Igreja Latina. Assim, a doutrina do purgatório começa com uma das ironias da história.
            Neste livro não tomarei nota das ideias gregas concernentes ao outro mundo exceto na medida em que elas venham a conflitar com as ideias latinas do purgatório em 1274, no Segundo Concílio de Lião, e posteriormente – em 1438 e 1439, além do limite cronológico deste estudo – no Concílio de Florença. Por causa dessa diferença de visões entre as duas Igrejas e porque a questão entre os dois mundos – uma divergência cujas raízes podem ser traçadas até a antiguidade tardia – a história do purgatório é um assunto do Ocidente latino. Não obstante, é importante, considerando os primórdios da doutrina, dizer algumas poucas palavras sobre os dois “inventores” gregos do Purgatório, Clemente de Alexandria († antes de 215) e Orígenes († 253/254). Clemente e Orígenes foram os dois grandes expoentes da Teologia em Alexandria durante o período em que esta cidade portuária era, nas palavras de H.I. Marrou, “o centro da cultura cristã”, e em particular, um caldeirão no qual Cristianismo e Helenismo se misturavam e se fundiam.
            Os fundamentos da doutrina elaborados por Clemente e Orígenes foram extraídos em parte de certas tradições filosóficas e religiosas gregas pagãs, em parte de sua própria reflexão original sobre a Bíblia e sobre a escatologia judaico-cristã.[1] Os dois teólogos foram devedores da antiga Grécia pela ideia de que o castigo infligido pelos deuses não é uma punição, mas, em vez disso, um meio de educação e salvação, parte de um processo de purificação. Na visão de Platão este castigo é uma bênção oferecida pelos deuses.[2] Clemente e Orígenes deduziram a partir da ideia de que “punir” é sinônimo de “educar”[3] e que qualquer castigo de Deus contribui para a salvação do homem.[4]
            A ideia de Platão foi vulgarizada pelo Orfismo e transmitida pelo Pitagoreanismo. A noção de que o sofrimento infernal serve como purificação pode ser encontrada, por exemplo, no sexto livro de Virgílio, Eneida (vv. 741-42, 745-47):

Por isso, nós, almas, somos treinados com punição
            E pagamos com sofrimento nossos antigos crimes–
            Alguns são pendurados desamparados aos ventos;
            A mancha do pecado é limpa por outros de nós
            Na calha de uma grande banheira ou com fogo
            Queimado fora de nós – cada um de nós sofre
            O Epílogo que merecemos.[5]

            A partir do Antigo Testamento, Clemente e Orígenes tomaram a noção de que o fogo é um instrumento divino, e do Novo Testamento a ideia do batismo pelo fogo (dos Evangelhos) e a ideia de um julgamento purificador após a morte (de Paulo).
            A noção do fogo como instrumento divino vem de interpretações de passagens do Antigo Testamento comumente citadas. A ideia platônica de Cristianismo que eles possuíam os levou a ter uma visão reconfortante da matéria. Clemente, por exemplo, argumentou que Deus não poderia ser vingativo: “Deus não se vinga, pois a vingança é pagar o mal com o mal, e com esta atitude, Deus pune apenas com vistas ao bem” (Stromata 7.26). Mantendo esta mesma atitude, estes dois teólogos trazem uma interpretação mais suave daquelas passagens do Antigo Testamento em que Deus usa explicitamente o fogo como um instrumento de sua ira. Consideremos Levítico 10.1-2: “Nadabe e Abiú, filhos de Arão, tomaram cada um o seu incensário, e puseram neles fogo, e sobre este, incenso, e trouxeram fogo estranho perante a face do SENHOR, o que lhes não ordenara. Então, saiu fogo de diante do SENHOR e os consumiu; e morreram perante o SENHOR”. Ou Deuteronômio 32.22: “Porque um fogo se acendeu no meu furor e arderá até ao mais profundo do inferno, consumirá a terra e suas messes e abrasará os fundamentos dos montes”. Orígenes, em seu Comentário sobre Levítico, vê essas passagens como exemplificando a preocupação de Deus em punir o homem para seu próprio bem. Similarmente, ele interpreta essas passagens em que Deus descreve a Si mesmo como um fogo não como expressões de um Deus de ira, mas ao invés disso, como um Deus que, ao consumir e devorar, age como um instrumento de purificação. Um exemplo disso é a décima-sexta homilia do seu Comentário sobre Jeremias, que lida com Jeremias 15.14: “Levar-te-ei com os teus inimigos para a terra que não conheces; porque o fogo se acendeu em minha ira e sobre vós arderá”. Outro é seu tratado Contra Celso 15.13.
            A ideia de um batismo com fogo está baseada naquilo que João Batista diz em Lucas 3.16: “Eu, na verdade, vos batizo com água, mas vem o que é mais poderoso do que eu, do qual não sou digno de desatar-lhe as correias das sandálias; ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo”. Orígenes, na vigésima-quarta homilia de seu Comentário sobre Lucas, dá a seguinte explicação:

Assim como João ficou próximo do Jordão entre aqueles que vinham para ser batizados, aceitando aqueles que confessavam seus vícios e pecados e rejeitando o resto, chamando-os “raça de víboras”, semelhantemente, o Senhor Jesus Cristo será um rio de fogo [in ígneo flumine] próximo a uma espada flamejante [flammea rompea] e batizará todos aqueles que irão para o paraíso após morrerem, contudo, sem purificação [purgatione indiget], fazendo-os entrar no lugar onde querem chegar. Mas aqueles que não carregam a marca do primeiro batismo não serão batizados no batismo de fogo. Alguém deve primeiro ser batizado na água e no Espírito, de modo que, quando o rio de fogo o alcance, as marcas as marcas do batismo da água e do Espírito permaneçam como sinais de que esse alguém é digno de receber o batismo de fogo em Jesus Cristo.

Finalmente, na terceira homilia sobre o Salmo 36, que contrasta o destino do homem mau, que sofre a ira de Deus, com o do homem justo, o beneficiário da proteção de Deus, Orígenes traz a seguinte explicação sobre a passagem da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, na qual este apóstolo descreve a purificação final pelo fogo:

Eu penso que todos nós devemos chegar a este fogo. Quem quer que sejamos, seja Pedro ou Paulo, passaremos por este fogo... como diante do Mar Vermelho, se formos egípcios devemos ser engolidos por este rio ou lado de fogo, pelos pecados que se acham em nós... ou também deveremos entrar no rio de fogo, mas, assim como as águas formaram um muro a esquerda e a direita dos judeus, assim deverá o muro formar um muro para nós... e deveremos seguir a coluna de fogo e a coluna de fumaça.

Clemente de Alexadria foi o primeiro a distinguir duas categorias de pecadores e duas categorias de punição nesta vida e na por vir. Nesta vida, para pecadores sujeitos a correção, a punição é educacional (didaskalikos), enquanto para os incorrigíveis é “punitiva” (kolastikos).[6] Na outra vida, haverá dois fogos, um “devorador e consumidor” para os incorrigíveis, e para o restante, um fogo que “santifica” e “não consome, como o fogo da forja”, um fogo “prudente”, “inteligente” (phonimon) “que penetra a alma que passa por ele”.[7]
As concepções de Orígenes foram mais detalhadas e amplas que as de Clemente. Como temos visto, Orígenes pensava que todos os homens, mesmo os justos, deveriam ser julgados pelo fogo, pois ninguém é absolutamente puro. Toda alma é tentada pelo mero fato de estar unida a sua carne. Na oitava homilia do Comentário sobre Levítico, Orígenes invoca a passagem do livro de Jó 14.4: “Quem da imundícia poderá tirar coisa pura? Ninguém!”. Para o justo, todavia, o julgamento pelo fogo é um tipo de batismo com o qual, pela fusão do chumbo que pesa sobre a alma, a transforma em ouro puro.[8]
Orígenes e Clemente concordam que há dois tipos de pecadores, ou melhor, que há os justos, cuja única mácula é aquela inerente a natureza humana (rupos, posteriormente traduzida para o Latim como sordes), e os pecadores propriamente ditos, que carregam o fardo extra dos pecados que, em teoria, são mortais (pros thanaton amartia, ou peccata em Latim).
A noção peculiar que fez de Orígenes um herege foi essa: que não há pecador tão mau, tão inveterado e tão essencialmente incorrigível que não possa ser ultimamente e completamente purificado e permitido entrar no Paraíso. Mesmo um inferno é uma habitação temporária. G. Anrich colocou isso muito bem: “Orígenes pensa no inferno como um tipo de purgatório”. Orígenes desenvolve até a plenitude a teoria da purificação, carthasis, que veio a ele de Platão, dos orfeões e dos pitagóricos. A ideia grega pagã de metempsicose era muito anti-cristã para que Orígenes a aceitasse, sendo assim, ele a substituiu por uma teoria que ele pensava ser compatível com o Cristianismo, ou seja, que as almas constantemente melhorassem após a morte e, sem importar quão pecadoras tenham sido em princípio, finalmente fariam suficiente progresso sendo permitido voltarem à eterna contemplação de Deus, que Orígenes chamou de apokatastasis.
Agora, as almas de cada tipo – aquelas que meramente se mancharam pela carne e aquelas que verdadeiramente se macularam pelo pecado – correspondem a um tipo diferente de fogo purificador. Aqueles que foram manchados pela carne simplesmente “passariam através” do “espírito de julgamento”, que duraria apenas um instante. Aqueles que foram maculados pelo pecado, por outro lado, permaneceriam por um período mais ou menos extenso no “espírito de combustão”. Embora horrivelmente dolorosa, essa punição não é incompatível com o otimismo de Orígenes: a mais drástica punição, a mais certa salvação. No pensamento de Orígenes há um sentimento de valor redentor do sofrimento que nós não encontramos até o fim da Idade Média, no século XV.
Para Clemente, o fogo “inteligente” que penetra a alma do pecador não é algo material (como A. Michel observou), mas também não é uma mera metáfora: era um fogo “espiritual” (stromata 7.6 e 5.14). Alguns comentaristas tem tentado fazer uma distinção entre os dois tipos de fogo descritos por Orígenes ao longo das linhas seguintes: o fogo pelo qual as almas meramente manchadas pela associação com a carne devem passar é um fogo real, como dissemos, enquanto que o “fogo da combustão” que as almas pecadoras devem realmente suportar é apenas uma labareda “metafórica”, desde que essas almas perversas, que serão salvas em última instância, não são consumidas por elas. Mas esta interpretação, penso eu, não é apoiada pelos textos invocados para justificá-la (De principiis 2.10, Contra Celso 4.13 e 6.71, etc). Em ambos os casos, o que está envolvido é um fogo purificador, que, embora imaterial, não é meramente uma metáfora: é real, porém espiritual, sutil. Quando essa purificação pelo fogo acontece? Sobre este ponto Orígenes é bem claro: após a ressurreição, no momento do julgamento final.[9] Certamente, o que temos aqui não é nada senão o fogo associado ao fim do mundo nas crenças milenares conhecidas por nós a partir de fontes indo-europeias, iranianas e egípcias subsumidas pelos estoicos sob o título de ekpurosis.
Na literatura judaica apocalíptica, o mais importante texto a respeito do fogo associado ao fim do mundo é encontrado na visão relatada no Livro de Daniel 7.9-11: “... o seu trono eram chamas de fogo, e suas rodas eram fogo ardente. Um rio de fogo manava e saía de diante dele... e estive olhando e vi que o animal foi morto, e o seu corpo desfeito e entregue para ser queimado”.
Mas as noções escatológicas de Orígenes eram altamente pessoais e não baseadas diretamente sobre este tipo de texto. Ele cria que as almas dos justos passariam pelo fogo em um instante e alcançariam o Paraíso no oitavo dia após o julgamento. As almas dos ímpios, por outro lado, continuariam a queimar após o dia do julgamento pelos “séculos dos séculos”. Mas isso não quer dizer a eternidade desde que, mais cedo ou mais tarde, todas as almas irão ao Paraíso. Seria apenas um longo tempo (In Lucam, Homily 24). Em outro lugar, Orígenes é ainda mais específico: usando uma aritmética, ele calcula que, assim como o mundo real teve a duração de uma semana antes do oitavo dia, assim também as almas dos pecadores sofrerão purificação no “fogo de combustão” por uma ou duas semanas, isto é, um longo tempo, no fim do qual, com o início da terceira semana, eles serão purificados (sétima homilia no Commentary on Leviticus). Deve ser notado que esse cálculo é meramente simbólico, enquanto que nos cálculos do século XIII a respeito do Purgatório, envolveu-se quantidades reais de tempo. Mas já vimos um sistema de contabilidade purgatorial tomando forma.
No quis diz respeito ao destino das almas entre o momento da morte e o tempo do julgamento final, Orígenes é bem vago. Ele assegura aos seus leitores que os justos vão ao Paraíso após a morte, mas esse Paraíso, diz ele, é diferente do céu, no qual as almas chegam apenas após o julgamento final e a prova pelo fogo, uma prova que pode durar muito ou pouco tempo.[10] Esse paraíso preliminar assemelha-se ao seio de Abraão, embora até onde eu saiba, Orígenes nunca o menciona por este nome. Nem fala Orígenes sobre o destino do pecador no período entre a morte e o julgamento final. A razão é que, como muitos de seus contemporâneos – na verdade, mais do que a maioria – Orígenes cria que o fim do mundo estava perto: “A consumação do mundo pelo fogo é iminente... o mundo e todos os seus elementos serão consumidos pelo calor do fogo até o fim deste século” (Sexta Homilia do Commentary on Genesis, PG 12.191). E mais: “Cristo veio nos últimos dias, quando o fim do mundo já estava próximo” (De principiis 3.5-6). O período entre a morte e o julgamento final é tão breve que não é digno de ser refletido. O teste pelo fogo “aguarda-nos no fim da vida” (In Lucam, Homilia 24).
Assim, se Orígenes vislumbrou o purgatório futuro, mesmo essa ideia de purgatório foi ofuscada pela escatologia e sua compreensão do inferno como uma habitação temporária que, em última análise, desaparece da vista. Ainda assim, foi Orígenes que claramente declarou pela primeira vez que a alma pode ser purificada no outro mundo após a morte. Pela primeira vez foi feita distinção entre pecados mortais e pecados menores. Nós podemos até mesmo ver três categorias começando a tomar forma: os justos que passam diretamente pelo fogo do julgamento e vão diretamente ao céu; aqueles culpados de “pecados menores”, cuja permanência no “fogo da combustão” é breve; e os “pecadores mortais”, que permanecem nas chamas por um extenso período. Orígenes, na realidade, desenvolve a metáfora introduzida por Paulo em 1 Coríntios 3.10-15. Ele divide as substâncias mencionadas por Paulo em duas categorias. Ouro, prata e joias preciosas são associados aos justos; madeira, feno e palha indicam pecadores menores. E Orígenes adiciona uma terceira categoria: ferro, chumbo e bronze são associados àqueles que são culpados dos piores pecados.
Também encontramos nas obras de Clemente e Orígenes uma rudimentar “aritmética da purgação”, que se esforça pra enfatizar aquilo que vê como uma ligação estreita entre a penitência e o destino da alma no além. Para Clemente de Alexandria, os pecadores corrigíveis são aqueles que se arrependem no momento da morte e se reconciliam com Deus, mas que não tem tempo para fazer penitencia. E Orígenes, por fim, vê a apokatastasis como um processo de purificação gradual pela penitência.[11]
Na visão do outro mundo, entretanto, um número de ingredientes do verdadeiro purgatório estão em falta. Nenhuma distinção clara é feita entre o tempo no purgatório e o do julgamento final. Essa confusão é tão perturbadora que Orígenes é forçado tanto a ampliar o fim do mundo quanto a colapsá-lo num momento único, enquanto que ao mesmo tempo elabora sua iminente expectativa. O purgatório não é verdadeiramente distinguido do Inferno, e não há consciência clara de que o purgatório seja uma habitação temporal e provisória. A responsabilidade pela purificação pós-morte é compartilhada pelo morto, com seu peso de pecado, e por Deus, o juiz benevolente da salvação; os vivos não desempenham qualquer papel. Finalmente, nenhum lugar é designado como o lugar do purgatório. Tornando o fogo purificador não apenas “espiritual”, mas também “invisível”, Orígenes impediu que a imaginação do fiel ganhasse uma compra nele.

Extraído do livro The Birth of Purgatoryi de Jacques Le Goff, pp. 52-57
Tradução Livre: Fabiano Raposo
                                                                  




[1] Sobre Clemente de Alexandria em relação ao início do Purgatório, a obra essencial ainda é a de G. Anrich, “Clements und Origenes als Begründer der Lehre vom Fegfeuer”, em Theologische Abhandlungen, Festgabe fur H. H. Holtzmann (Tübingen-Leipzig, 1902), pp. 95-120. Um bom tratamento a partir de um ponto-de-vista católico pode ser encontrado em A. Michel, “Origène et le dogme du Purgatoire”, em Questions Ecclésiastiques (Lille, 1913), sumarizado pelo autor em seu artigo “Purgatoire” no Dictionnaire de Théologie Catholique, cols. 1192-96. Breves, porém judiciosas, observações sobre a pré-história do purgatório são feitas por A. Piolanti, “Il Dogma del Purgatorio”, em Le Baptême de feu, pp. 3-4; e para um exegese da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, veja J. Gnilka, Ist 1 Kor. 3,10-15 ein Schriftzeugnis fur das Fegfeuer?, especialmente p.115.
[2] Os principais textos citados por Anrich, “Clement und Origenes”, p.99 n.7 e p. 100 n. 1, são os seguintes: Gorgias 34.478 e 81.525; Phaedo 62.113d; Protagoras 13.324b; e Laws 5.728c.
[3] Clemente de Alexandria, Stromata 5.14 e 7.12.
[4] Orígenes, De principiis 2.10.6 e De oratione 29.
[5]              Aliis sub gurgit vasto
                Infectum eluitur scelus, aut exuritur igni
                ...
                Donec longa dies perfecto temporis orbe
                Concretam exemit labem, purumque relingquit
                Aetherium sensum...
[6] Clemente de Alexandria, Stromata 4.24.
[7] Ibid 8.6
[8] Orígenes, In Exodum, homilia 6, em J.P. Migne, Patrologiae cursus completus, series graeca, 162 vols. (Paris, 1857-66; citado daqui por diante como PG), 13.334-35; In Leviticum, homilia 9, PG, 12.519.
[9] Por exemplo, In Jeremiam, homilia 2; In Leviticum, homilia 8; In Exodum, homilia 6; In Lucam, homilia 14; etc.
[10] De principiis 2.11 n.6; In Ezechielem, homilia 13 n.2; In Numeros, homilia 26
[11] Cf. K. Rahner, “La doctrine d’Origène sur la pénitence”, Recherches de Science religieuse 37 (1950).

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

A DOUTRINA DA INFALIBILIDADE PAPAL (ORIGENS)

Por Keith Mathison


Um desenvolvimento teológico de profunda importância para nosso estudo da Idade Média tardia é a introdução e o desenvolvimento da doutrina da infalibilidade papal.[1] As origens da doutrina da infalibilidade papal nos anos próximos a 1300 são uma história fascinante, mas o escopo desta obra focará nos pontos principais. Pelo fato de alguns traçarem as origens da doutrina da infalibilidade papal aos canonistas, estes serão o ponto inicial.[2] No século entre 1150 e 1250, um estudo dos escritos dos canonistas e teólogos revela que “eles não conheciam qualquer magistério conferido a Pedro com o poder das chaves; que eles criam que em questões de fé um concílio ecumênico era maior que o papa; que eles não sustentavam que pronunciamentos papais eram irreformáveis ex sese [em si mesmas].[3] Como Tierney aponta, “acima de tudo, os canonistas não ensinavam que o papa era infalível”.[4] Ao contrário, a posição que era geralmente sustentada contrastava a fé indefectível da Igreja com a falibilidade dos papas individuais. Os teólogos, que escreveram bem menos sobre o assunto, também compartilhavam desse ponto de vista geral.
Em 1254 uma disputa surgiu entre os frades mendicantes e os mestres seculares na Universidade de Paris.[5] Tanto dominicanos quanto franciscanos estavam envolvidos, mas são os franciscanos que requerem nossa atenção. A ordem deles havia recebido privilégios desde 1230, e sua dependência desses privilégios provaria ser problemática. O problema proveio de sua afirmação de que sua doutrina da “pobreza apostólica” não era simplesmente uma boa forma de viver ou a melhor forma de viver, mas que era um aspecto essencial da forma perfeita da vida de Cristo transmitida aos apóstolos.[6] Muitos deles alegavam que São Francisco havia sido o primeiro cristão a compreender corretamente o evangelho desde os tempos dos apóstolos e que os franciscanos eram os únicos membros da Igreja que verdadeiramente levavam vidas cristãs.[7] É claro que essas alegações eram altamente controversas e levantaram não pouca oposição. Boaventura, o cabeça da ordem franciscana, respondeu aos argumentos contra a ordem desenvolvendo uma teoria da pobreza que ele mesmo intitulou “condescendência”. Sem entrar em todos os detalhes, é suficiente dizer que em 1279, na bula Exiit qui seminat, o Papa Nicolau III deu sanção papal à doutrina de Boaventura e afirmou que “a forma franciscana de vida realmente corresponde à forma da perfeição que Cristo ensinou aos apóstolos”.[8]
O primeiro grande cristão medieval a afirmar a doutrina da infalibilidade papal foi Pedro de João Olivi, um franciscano altamente influente nas décadas que se seguiram à morte de Boaventura. Ele viveu e escreveu num período de tempo em que os franciscanos estavam divididos em dois grandes campos: a maior e menos rigorosa “Comunidade” e os rigorosos “espirituais”. O próprio Olivi foi um proeminente porta-voz dos espirituais.[9] A razão pela qual Olivi, ao contrário de Boaventura, desenvolveu a doutrina da infalibilidade papal, diferente de seu antecessor, foi seu medo constante da possibilidade de que um futuro pseudo-papa buscasse derrubar a fé verdadeira (i.e., a forma de vida franciscana). Na mente de Olivi, era necessário que os decretos dos papas (tais como Nicolau III) “fossem considerados como não apenas autoritativos para o presente, mas imutáveis, irreformáveis por todos os tempos”.[10] Isso, no entanto, era impossível dentro do quadro da doutrina da soberania papal dos canonistas. Eles entendiam que uma doutrina de infalibilidade limitaria a soberania de um papa individual. Olivi sabia muito disso. Sua “nova teoria da infalibilidade papal foi designada para limitar o poder dos papas futuros, não para libertá-los de qualquer restrição”.[11]
A nova doutrina de Olivi foi ignorada por quarenta anos, mas em 1322 o Papa João XXII revogou as provisões pró-franciscanas da Exiit e emitiu uma nova declaração sobre a doutrina da pobreza de Cristo.[12] Os franciscanos ficaram consternados e reagiram emitindo duas cartas encíclicas defendendo sua doutrina. O Papa João respondeu no fim de 1322 na bula Ad conditorem. Para João, “a ideia de que quaisquer decisões devessem ser incorrigíveis apresentava-se... simplesmente com uma ameaça a sua própria autoridade soberana”.[13] Essa bula provocou uma resposta apaixonada da parte dos franciscanos que apelaram contra ela ao próprio papa. Em novembro de 1323, o Papa João XXII emitiu seu julgamento final sobre a questão da pobreza de Cristo na bula Cum inter nonnulos. A bula refere-se à visão de que “Jesus Cristo e seus apóstolos não tiveram nada isoladamente ou em comum” como errônea e herética.[14] Pelo fato dessa bula explicitamente contradizer a antiga bula Exiit, os franciscanos começaram a asseverar a incorrigibilidade da primeira ao ponto de condenarem a visão de João como herética. Como Tierney nota,

A primeira condenação evidente de uma bula papal veio de... um grupo de dissidentes franciscanos que encontraram refúgio na corte do imperador excomungado Luís IV da Baviera. O protesto deles, incluído como um tipo de digressão no Apelo de Sachenhausen do Imperador em 24 de maio de 1324, não apenas defendia a doutrina da pobreza evangélica e denunciava João XXII como um herege por atacar a doutrina, mas também apresentava uma nova formulação da teoria da infalibilidade papal. Nesta obra, pela primeira vez, o antigo ensinamento de que uma das chaves que tinha sido entregue a Padro era a “chave do conhecimento” foi usado para apoiar a doutrina de que o papa era infalível quando usava essa chave para definir verdades sobre a fé e a moral. Foi um grande avanço teológico.[15]

O Apelo de Sachenhausen trouxe a discussão para o domínio do pensamento católico pela primeira vez.
Em novembro de 1324, João XXII respondeu na bula Quia quorundam que o “Pai da mentira” tem levado seus [do Papa] inimigos a defender a tese errônea de que “o que Pontífice Romano uma vez defina em questões de fé e moral com a chave do conhecimento seja tão imutável que não permita que um sucessor a revogue”.[16]

Os intercâmbios de 1324 são de interesse fascinante para um historiador da doutrina da infalibilidade papal. Aqui, pela primeira vez, uma doutrina da infalibilidade papal baseada sobre o poder petrino das chaves foi manifestamente proposta. Mas a doutrina teve por pai antipapas rebeldes e não teólogos da Cúria. E, longe de abraçar a doutrina, o Papa indignadamente a denunciou como uma invenção perniciosa.[17]

O mais impressionante sobre a doutrina da infalibilidade papal é que ela “foi inventada quase que fortuitamente por causa de uma concentração histórica de circunstâncias não usuais que fizeram surgir uma doutrina útil para um grupo particular de contendedores”.[18]

Não há evidência convincente de que a infalibilidade papal tenha constituído qualquer parte da tradição teológica ou canônica da Igreja antes do século XIII; a doutrina foi criada em primeiro lugar por uns poucos dissidentes franciscanos porque lhes era adequado e conveniente inventá-la; eventualmente, mas não somente após muita relutância, foi aceita pelo papado porque ela se adequava a conveniência dos papas em aceitá-la.[19]

A doutrina católica da infalibilidade papal não foi declarada como dogma oficial católico até o primeiro Concílio do Vaticano em 1870, mas sua origem pode ser traçada a essa obscura batalha do século XIII entre franciscanos radicais e o papado.

Extraído do livro The Shape of Sola Scriptura de Keith A. Mathison, pp. 58-61
Tradução Livre: Fabiano Raposo




[1] Para um excelente estudo histórico desta questão, veja Brian Tierney, Origins of Papal Infallibity: 1150-1350, (Leiden: E.J. Brill, 1988).
[2] Canonistas ou advogados canônicos eram aqueles que estudavam e sistematizavam as leis canônicas – regras da igreja estabelecidas para propósitos práticos de ordem e disciplina. Muito frequentemente os cânons de ordem e disciplina eram estabelecidos em concílios (tais como Nicéia em 325 d.C.). Mas a coleção e padronização da lei canônica alcançou seu ponto máximo na obra de Graciano, cujo decretum foi o livro-texto padrão por toda a Idade Média tardia.
[3] Tierney, op. cit., 57.
[4] Ibid.
[5] Um “mendicante” é alguém que depende de esmolas para viver
[6] Cf. Latourette, op. cit., I:429-436.
[7] Tierney, op. cit., 67-72.
[8] Ibid., 59-70.
[9] Ibid., 93-101.
[10] Ibid., 125.
[11] Ibid., 130.
[12] La Due, op. cit., 146-147.
[13] Tierney, op. cit., 178-179.
[14] Citado em Tierney, op.cit., 178-179.
[15] Ibid., 182.
[16] Citado em Tierney, op. cit., 186.
[17] Ibid., 187-188.
[18] Ibid., 274.
[19] Ibid., 281.